Caros amigos jotabenianos, aqui a bela homenagem do nosso Borges Neto ao amigo Fritz no JB Online.
O legado que Fritz nos deixou
Jornal do Brasil online
de Borges Neto
— Isso é para fazeres o meu obituário?
Bom
de línguas (português, alemão, inglês, francês e espanhol), Fritz
sabia também da diferença que existe entre o "você" e o "tu" para o
legítimo ouvido português. O "você" não admite intimidades, mas o "tu"
ou o verbo na segunda pessoa do singular é a única forma de se tratarem
amigos mais chegados.
Quando bati à porta do quarto de hospital, onde estava havia três dias, e entrei
sem mais cerimônia, ele me saúda:
— Ó Luso!
— Ó Germano!
O bom Germano, como passei a tratá-lo desde que nos vimos a primeira vez, na Redação do JB,
em 1972, estava tomando café com leite e uma torrada que me parecia
estar coberta de doce de uva. Na frente dele, estava a Liège, esposa e
enfermeira zelosa, que me mandou sentar no sofá. Creio que,
instintivamente, ela pegou o laptop e o abriu como para me apresentar os
netos lindos — a menina Gabriela-Gabi e o menino André, filhos do
Pedro. Depois, Liège começou a preparar as coisas para ir aos
responsáveis do plano de saúde para "brigar". O próprio Fritz
completou:
— A gente passa uma vida descontando e, quando precisa, é uma guerra.
Desde
a primeira hora eu era, para
o Fritz, o Luso e — confesso — o apelido não me desagradava, ao
contrário de quando me chamam de "português", talvez porque o verbete
me lembra o conceito que o brasileiro ainda hoje faz dos meus
compatriotas, em geral desprovidos de maior inteligência e que vinham
para o Brasil sem saber ler nem escrever.
Quando
estive com o Fritz pela última vez, eu sabia que seu estado de saúde
não era nada animador, mas não sabia de mais uma qualidade que bem o
distinguia do comum dos mortais. Ele não era de se entregar. À saída do
quarto, eu disse até para a Liège: "Vou embora, mas nem um pouco
abalado. Seu marido me deixa edificado".
Em horas como esta, Fritz foi, para mim, uma das figuras humanas mais dignas de admiração que conheci em toda a minha vida.
Ele conversava, gracejava, sabia escutar e, ainda que discordasse,
sabia respeitar. Sabendo que estava diante de um católico, pleno de
convicções religiosas, permitiu-se:
— Posso não crer em Deus mas não posso dizer que ele não existe.
O engraçado é que, nesta visita, uma só coisa me tinha levado até ele, como mandam as obras de misericórdia: "assistir os enfermos". Fritz estava doente, e uma visita que lhe fizesse não era mais que obrigação, pois que
tanto eu lhe devia.
Pessoalmente,
lhe sou muito grato. No ano 2000 mil eu já tinha aposentado, havia
bastante tempo, minha caneta de repórter. Pois o Fritz, quando era
chefe de Redação, lá no prédio da Avenida Brasil, lembrou-se de mim e me
telefonou:
— Luso, o que estás fazendo?
— A bem dizer, nada — gaguejei.
— Então, amanhã, tu vens para aqui, tens muito o que fazer neste jornal.
Foi assim que pude cobrir os 500 anos da descoberta do Brasil, em Porto Seguro, deslocar-me até São Félix do Araguaia para entrevistar o bispo dom Pedro Casaldaliga y otras cositas más.
Não
foi sem algum sacrifício que naquela manhã fui até o Quinta D'Or para
ver o amigo Fritz, já que nas primeiras horas do dia eu sou uma
espécie de babá das netas que moram comigo (uma de 7 e outra de 9
anos). Mas, além de tudo, eu sabia que estava cumprindo uma obra de
misericórdia: "assistir os enfermos". No entanto, a obra de
misericórdia que mais se evidenciou naquela hora foi outra: "ensinar os
ignorantes".
Eu era o ignorante, e
Fritz quem ensinava. Quando for a minha vez, quisera eu ensinar os
outros como ele me ensinou. Ele me ensinou como sofrer sem perder a
tranquilidade. Me ensinou a não fazer queixas de mim senão ao médico,
ser humilde e não me julgar melhor nem pior que os outros, sofrer sem
nada cobrar nem nada maldizer. Eu sabia que, continuamente, ele sofria
dores atrozes, e nem por um instante se queixou do quer que fosse.
Na
meia hora que passei com o Fritz, ele mesmo, sem querer, me ajudou a
ver melhor a grandeza do homem que estava diante de mim. Durante os
muitos anos que com
ele trabalhei, eu reconhecia em Fritz um grande jornalista, mas só. Tão
depressa cobria um trivial acidente rodoviário como escavava tudo o
que se escondia nos porões e periferia da baixa política. Chegou a ser correspondente do Jornal do Brasil
em Nova York e em Paris. Um modelo de análise e descrição, de amor à
profissão que ele abraçou ainda jovem e tanto soube honrar.
Agora,
não. Agora era o mestre do sofrimento e da grandeza de coração que nele
se escondia. Um coração que, parece, veio só para amar. Que mais se
pode desejar numa pessoa humana? Ama e serás amado — Fritz, que foi um
companheiro sempre
humilde mesmo nas alturas a que seu talento o levou, isso ele sabia
mais do que tudo.
Ainda durante a
visita que lhe fiz, Fritz — que nasceu na Alemanha em janeiro de
1945, quando já se percebiam no ar prenúncios do fim da Segunda Guerra —
me contou um pouco da sua vida. Já no Paraguai, para onde foi ainda
menino, quis ser padre depois que viu um sacerdote pregar "feito um
trovão". Depois quis ser capitão de navio, resultado certamente de suas
viagens por mar.
Quis também ser engenheiro naval, médico, tudo que lhe parecesse ser
maneira de ser útil aos outros. E como ele foi útil para muitos!
Mesmo
doente, e diante de algumas perguntas que lhe fiz depois de ouvir seu
histórico, Fritz não se impacientou nem perdeu o humor. "Você quer fazer
é o meu obituário" — brincou.
— Que é
isso, amigo? Tu tens 68 anos. Tua mulher e teus filhos, teus netos e
tantos de nós que te amamos, todos queremos ver-te connosco por muito
tempo ainda.
Mas Fritz se foi, deixando
em todos nós imensa saudade junto com um legando precioso: amor à
profissão, respeitando à verdade, pesquisando, defendendo a justiça,
fazendo o bem.
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Vejam, abaixo, reprodução do Jornalistas&Cia com perfil do nosso colega. (clique na imagem para aumentar)
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