sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O adeus de Borges Neto a Fritz Utzeri


Caros amigos jotabenianos, aqui a bela homenagem do nosso Borges Neto ao amigo Fritz no JB Online.
O legado que Fritz nos deixou
de Borges Neto


Estive com o Fritz Utzeri quatro dias antes de ele morrer. Mesmo desenganado dos médicos, ele parecia não levar em consideração o linfoma com que se debatia há três anos. E se lhe perguntava pelas andanças e contradanças da vida desde que nasceu, nem por um instante se impacientou. Apenas perguntou, mesmo assim em tom de galhofa, como sempre lhe foi natural:
— Isso é para fazeres o meu obituário?
Bom de línguas (português, alemão, inglês, francês e espanhol), Fritz sabia também da diferença que existe entre o "você" e o "tu" para o legítimo ouvido português. O "você" não admite intimidades, mas o "tu" ou o verbo na segunda pessoa do singular é a única forma de se tratarem amigos mais chegados.
Quando bati à porta do quarto de hospital, onde estava havia três dias, e entrei sem mais cerimônia, ele me saúda:
— Ó Luso!
— Ó Germano!
O bom Germano, como passei a tratá-lo desde que nos vimos a primeira vez, na Redação do JB, em 1972, estava tomando café com leite e uma torrada que me parecia estar coberta de doce de uva. Na frente dele, estava a Liège, esposa e enfermeira zelosa, que me mandou sentar no sofá. Creio que, instintivamente, ela pegou o laptop e o abriu como para me apresentar os netos lindos — a menina Gabriela-Gabi e o menino André, filhos do Pedro. Depois, Liège começou a preparar as coisas para ir aos responsáveis do plano de saúde para "brigar". O próprio Fritz completou:
— A gente passa uma vida descontando e, quando precisa, é uma guerra.
Desde a primeira hora eu era, para o Fritz, o Luso e — confesso — o apelido não me desagradava, ao contrário de quando me chamam de "português", talvez porque o verbete me lembra o conceito que o brasileiro ainda hoje faz dos meus compatriotas, em geral desprovidos de maior inteligência e que vinham para o Brasil sem saber ler nem escrever.
Quando estive com o Fritz pela última vez, eu sabia que seu estado de saúde não era nada animador, mas não sabia de mais uma qualidade que bem o distinguia do comum dos mortais. Ele não era de se entregar. À saída do quarto, eu disse até para a Liège: "Vou embora, mas nem um pouco abalado. Seu marido me deixa edificado".
Em horas como esta, Fritz foi, para mim, uma das figuras humanas mais dignas de admiração que conheci em toda a minha vida. Ele conversava, gracejava, sabia escutar e, ainda que discordasse, sabia respeitar. Sabendo que estava diante de um católico, pleno de convicções religiosas, permitiu-se:
— Posso não crer em Deus mas não posso dizer que ele não existe.
O engraçado é que, nesta visita, uma só coisa me tinha levado até ele, como mandam as obras de misericórdia: "assistir os enfermos". Fritz estava doente, e uma visita que lhe fizesse não era mais que obrigação, pois que tanto eu lhe devia.
Pessoalmente, lhe sou muito grato. No ano 2000 mil eu já tinha aposentado, havia bastante tempo, minha caneta de repórter. Pois o Fritz, quando era chefe de Redação, lá no prédio da Avenida Brasil, lembrou-se de mim e me telefonou:
— Luso, o que estás fazendo?
— A bem dizer, nada — gaguejei.
— Então, amanhã, tu vens para aqui, tens muito o que fazer neste jornal.
Foi assim que pude cobrir os 500 anos da descoberta do Brasil, em Porto Seguro, deslocar-me até São Félix do Araguaia para entrevistar o bispo dom Pedro Casaldaliga y otras cositas más.
Não foi sem algum sacrifício que naquela manhã fui até o Quinta D'Or para ver o amigo Fritz, já que nas primeiras horas do dia eu sou uma espécie de babá das netas que moram comigo (uma de 7 e outra de 9 anos). Mas, além de tudo, eu sabia que estava cumprindo uma obra de misericórdia: "assistir os enfermos". No entanto, a obra de misericórdia que mais se evidenciou naquela hora foi outra: "ensinar os ignorantes".
Eu era o ignorante, e Fritz quem ensinava. Quando for a minha vez, quisera eu ensinar os outros como ele me ensinou. Ele me ensinou como sofrer sem perder a tranquilidade. Me ensinou a não fazer queixas de mim senão ao médico, ser humilde e não me julgar melhor nem pior que os outros, sofrer sem nada cobrar nem nada maldizer. Eu sabia que, continuamente, ele sofria dores atrozes, e nem por um instante se queixou do quer que fosse.
Na meia hora que passei com o Fritz, ele mesmo, sem querer, me ajudou a ver melhor a grandeza do homem que estava diante de mim. Durante os muitos anos que com ele trabalhei, eu reconhecia em Fritz um grande jornalista, mas só. Tão depressa cobria um trivial acidente rodoviário como escavava tudo o que se escondia nos porões e periferia da baixa política. Chegou a ser correspondente do Jornal do Brasil em Nova York e em Paris. Um modelo de análise e descrição, de amor à profissão que ele abraçou ainda jovem e tanto soube honrar.
Agora, não. Agora era o mestre do sofrimento e da grandeza de coração que nele se escondia. Um coração que, parece, veio só para amar. Que mais se pode desejar numa pessoa humana? Ama e serás amado — Fritz, que foi um companheiro sempre humilde mesmo nas alturas a que seu talento o levou, isso ele sabia mais do que tudo.
Ainda durante a visita que lhe fiz, Fritz — que nasceu na Alemanha em janeiro de 1945, quando já se percebiam no ar prenúncios do fim da Segunda Guerra — me contou um pouco da sua vida. Já no Paraguai, para onde foi ainda menino, quis ser padre depois que viu um sacerdote pregar "feito um trovão". Depois quis ser capitão de navio, resultado certamente de suas viagens por mar. Quis também ser engenheiro naval, médico, tudo que lhe parecesse ser maneira de ser útil aos outros. E como ele foi útil para muitos!
Mesmo doente, e diante de algumas perguntas que lhe fiz depois de ouvir seu histórico, Fritz não se impacientou nem perdeu o humor. "Você quer fazer é o meu obituário" — brincou.
— Que é isso, amigo? Tu tens 68 anos. Tua mulher e teus filhos, teus netos e tantos de nós que te amamos, todos queremos ver-te connosco por muito tempo ainda.
Mas Fritz se foi, deixando em todos nós imensa saudade junto com um legando precioso: amor à profissão, respeitando à verdade, pesquisando, defendendo a justiça, fazendo o bem.


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Vejam, abaixo, reprodução do Jornalistas&Cia com perfil do nosso colega. (clique na imagem para aumentar)













Jornalistas&Cia edição 883









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