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As façanhas do Doutor Fritz Por Norma Couri em 12/02/2013 na edição 733 Observatório da Imprensa
Sábado, 16 de Fevereiro de 2013 | ISSN 1519-7670 - Ano 17 - nº 733
MEMÓRIA
FRITZ UTZERI (1945-2012)
As façanhas do Doutor Fritz
Por Norma Couri em 12/02/2013 na edição 733 Observatorio da Imprensa
Difícil alguém ter passado pelo Jornal do Brasil na sua melhor fase,
quando todo mundo adorava visitar a Redação, e não se lembrar de um
gordinho irreverente de óculos, que costumava colar na sua mesa um
cartaz com os dizeres “não atirem amendoim para os repórteres”. O Jornal
do Brasil tem histórias e tem pessoas que fizeram sua lenda. Uma delas é
Fritz Utzeri. Por que tantas homenagens, tantas reportagens, tantas
lembranças? Jornalistas há muitos, mas o que fica é o afeto por um
colega generoso, carismático, estimulador e criador de uma aura
positiva, aquele que salvou você de fracassar numa pauta impossível,
quando tinha tudo para roubar a glória do furo.
Isso era
fundamental na Redação de antanho, quando as pessoas não se isolavam com
seus computadores em casa. Ficavam amontoadas na fábrica de notícias,
manipuladas pelas chefias para competir e ser o melhor. Havia
derrubadores e havia os fritz. Uns e outros bons repórteres, mas
estudiosos do comportamento humano provaram: são os fritz e o afeto que
ficam.
Fritz Utzeri era um grande repórter da geral nos anos
malditos em que todo mundo tinha medo de “desaparecer”. Desafiou a
ditadura com pelo menos duas reportagens que renderam dois prêmios Esso
ao jornal. A primeira sobre a morte do deputado Rubens Paiva, arrancado
de seu apartamento no Leblon, em janeiro de 1971, para nunca mais ser
visto. A segunda sobre o embuste do atentado no Riocentro, em 30 de
abril de 1981.
Pautas perigosas
Junto com outro
repórter, Heraldo Dias, Fritz publicou três páginas a 27 de outubro de
1978 no caderno especial do Jornal do Brasil com o título “Quem matou
Rubens Paiva”, e a foto do deputado. Eles derrubaram a versão oficial de
que o ex-deputado preso pela Aeronáutica e detido no temido quartel da
Polícia do Exército na Rua Barão de Mesquita teria sido resgatado por
oito subversivos quando seguia num Fusca espremido por três militares.
Na troca de tiros o ex-deputado teria sido morto e os militares, salvos
ao se refugiar atrás de um muro na Avenida Edson Passos, no Alto da Boa
Vista, no Rio.
Na reportagem, os repórteres denunciaram:
“Isso significa que Rubens, aos 41 anos, gordo, hipertenso, cardíaco e
diabético – e além disso fora visto algumas horas antes bastante
machucado e com dificuldade para respirar – correu um mínimo de 25
metros, em meio a fogo cruzado, após sair do banco traseiro de um
Volkswagen alvejado por 24 tiros, cinco dos quais alojados justamente no
local em que deveria estar. E o carro estava em chamas”
Três
anos depois, alertado pelo também repórter Sergio Fleury de que o Puma
usado no atentado no Riocentro na noite de 30 de abril estava num
terreno baldio que havia em frente à 16ª Delegacia, na Barra da Tijuca,
Fritz, de plantão no feriado de 1º de maio, saiu disparado e acoplado ao
fotógrafo Rogério Reis. Não faltou ângulo possível de ser observado nas
fotos e na matéria publicada no dia seguinte, e a reportagem provava
que a bomba destinada a fazer um estrago na festa de comemoração do Dia
do Trabalho explodiu mesmo no colo do sargento Guilherme Pereira do
Rosário (codinome Wagner, que O Pasquim chamava de “Capitão Bomba” ou “O
Pênis do Ano”) sentado ao lado do piloto do Puma, capitão Wilson Luis
Chaves Machado (codinome dr. Marcos).
A bomba era um plano
macabro para acusar como autores os “terroristas”. O relatório divulgado
pelo comando do I Exército concluía que os militares atingidos foram
vítimas de uma armadilha “ardilosamente colocada no carro do capitão”.
As fotos-documento de Rogério e o relato preciso de Fritz (“a chave
estava no contato, em posição de ligado. Assim, é bastante provável que,
na hora da explosão, o carro estivesse chegando ou preparando-se para
sair daquele local”) reverteram o jogo e ainda provaram que a perícia
sequer havia recolhido o talão de estacionamento no Riocentro (“de
número 64 270”). fazendo vista grossa às pistas que certamente
concluiriam o mesmo que Fritz.
Só quem viveu aqueles anos de
chumbo numa redação sabe dos perigos que os repórteres corriam. A
reportagem sobre Rubens Paiva foi publicada no governo Médici e a do
Riocentro no último governo da ditadura, com o general Figueiredo – e
esta, por precaução, Fritz não assinou.
Sem queixas
O
Brasil levou 35 anos para concluir no dia da morte de Fritz – de acordo
com o relator da Comissão da Verdade, Claudio Fonteles – que o deputado
foi assassinado sob tortura por três militares nos porões do Doi-Codi no
Rio.
Três meses antes a farsa dos militares já havia sido
confirmada com a abertura dos arquivos de 200 páginas do comandante do
Doi-Codi à época do atentado ao Riocentro, coronel reformado do Exército
Julio Miguel Molina Dias, assassinado em novembro do ano passado em
Porto Alegre. O jornal Zero Hora foi o primeiro a publicar que os
agentes “supervisores” do atentado foram as únicas vítimas numa festa
que poderia ter ferido ou matado muitas das 20 mil pessoas presentes,
incluindo os músicos como Chico Buarque. Mas a revista Época já
revelava, em 27 de outubro de 1999, que um novo Inquérito Policial
Militar indiciou o tenente-coronel sobrevivente Wilson Machado por
homicídio qualificado e desmascarou o falso testemunho do general da
reserva Newton Cruz, então chefe do Serviço Nacional de Informação.
Nenhuma revelação oficial ou escrita sairá antes de 14 de maio de 2014
da Comissão da Verdade instaurada no Brasil depois que vários países da
América Latina, como Argentina, Peru e Chile, já instalaram as suas.
Também ninguém será condenado, como afirma – e lastima – um dos sete
integrantes da Comissão, Paulo Sergio Pinheiro. Mas pelo menos Fritz
lavou a alma, acompanhou parte da virada do Brasil que ele conheceu
sombrio e cheirando a chumbo.
Joel Silveira recusava o título
de doutor dado pelo dono dos Diários Associados, Assis Chateaubriand,
dizia que só tinha terminado o primeiro ano de Direito. Chatô reagia:
“Doutor é quem é douto em alguma coisa, e você é douto em jornalismo”.
Fritz era doutor pelos dois lados. Já trabalhava no Jornal do Brasil e
cursava a Faculdade de Medicina quando ficou difícil manter as duas
coisas e, o como conta o editor chefe do JB à época, Alberto Dines, o
jornal resolveu bancar os estudos do primeiro repórter especializado na
área médica dando um aumento de salário. Bons tempos. Mas antes de se
tornar “doutor” em Medicina Fritz optou: dizia que tinha medo de
abandonar a profissão onde já era doutor em Jornalismo.
A
medicina serviu para várias matérias específicas que derrubariam
qualquer repórter, mas acabou sendo a última reportagem de Fritz. Ele
fez como o famoso repórter americano I. F. Stone, que depois de
abandonar as redações e entrar na lista negra do macartismo criou seu
próprio jornal, o newsletter I.F.Stone Weekly, que circulou de 1953 a
1971.
Depois de trabalhar no Correio da Manhã e no Jornal do
Brasil, de onde foi enviado como correspondente para Nova York e Paris,
para na volta se tornar editor de Ciência da TV Globo, Fritz, fora das
redações e reclamando (“desempregado e fora do mercado, malvisto pela
Globo”), criou, em 2004, seu próprio jornal na internet, o Montbläat
(“Dístico em sueco: se você entender o Brasil, por favor, conta pra
gente”), que começou com sete páginas e foi engordando durante os oito
anos de duração, combatendo e sendo contra.
Montbläat, com cara
de sueco e trema, não queria dizer absolutamente nada, era um jornal
fictício na Suécia cujo correspondente, também fictício no Brasil,
Harald Magnussem, o Magu (Fritz), vivia sendo demitido porque o editor
não acreditava nos textos que o infeliz jornalista lhe enviava. Fritz
justificava: “Tente explicar a um cidadão de Estocolmo o Senado
brasileiro com 10 mil funcionários, mais de 180 diretores, inclusive um
diretor de check-in”.
Ali no Montbläat, nos últimos números,
Fritz atuava como dublê de médico e repórter, dando o passo a passo da
doença, contando a baixa das placas, o choque anafilático que causou
edema pulmonar, a sensação de morte, a falta de imunidade, o antiviral
que tornou a dor suportável, a guerra desta vez contra o inimigo que era
a doença. Sempre ironizando. E sem nunca se queixar: ele sempre dizia
que as pessoas só devem se queixar de si próprias para o médico. No
teclado do computador jogava um jogo contra a morte, como Ingmar Bergman
fez em O Sétimo Selo, em 1953, no tabuleiro de xadrez. A doença,
afinal, venceu.
Fritz Utzeri morreu de um linfoma, um câncer nos glânglios, aos 68 anos, na madrugada de terça-feira, dia 5 de fevereiro.
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